A Via do Alquimista: As Figuras de Lambspring
Comentários sobre Tratado da Pedra Filosofal de Lambspring e as Imagens do Tratado
A alquimia nunca foi uma curiosidade obsoleta ou uma metáfora vazia. Ela fala sobre nós. Sobre a travessia silenciosa que cada pessoa realiza para superar a própria fragmentação. O Tratado da Pedra Filosofal de Lambspring, obra renascentista de autor anônimo, revela esse caminho através de quinze emblemas que combinam imagem e palavra, não como ilustração, mas como símbolo operatório.
A leitura contemporânea dessa obra costuma carregar o equívoco iluminista: interpretar a alquimia como um proto-laboratório químico, ou como um delírio místico do passado. Entretanto, Patrick Paul, em sua introdução ao seu livro Meditações sobre o Tratado da Pedra Filosofal - Volume I, restitui o verdadeiro horizonte deste livro: a alquimia é uma ciência do ser, cuja prática é psicocorporal, imaginal e transformadora.
O Segredo Acessível
“O conhecimento alquímico no seu apogeu, entre os séculos XIV e XVI, deve ser considerado em sua ligação com os caminhos secretos da tradição ocidental,” escreve Paul. “Ele é posterior à iniciação da cavalaria (séculos XI ao XIII) e anterior à iniciação Rosa-Cruz (séculos XVII e XVIII).” Esses ensinamentos foram transmitidos desde a antiguidade do Egito à Grécia, passando pelo período latino e pelo cristianismo. O sentido profundo dessa transmissão é a capacidade de acesso direto à transcendência e à imortalidade através da vida física, ou por meio dela.
Mas esse acesso exige purificação. “Ao contrário da opinião geral,” adverte Paul, “o aumento de consciência que resulta disso não é uma ‘superconsciência’, mas uma ‘superinconsciência’.” Trata-se de um encontro com o Espírito Santo, espírito de Vida, de inteligência e sabedoria, que requer o abandono da mente ordinária, um descondicionamento das formas e representações, das falsas crenças que cada um carrega. A via iniciática não é conquista intelectual, mas dom. “Não se trata na alquimia de um trabalho de laboratório exterior,” escreve Paul. “A injunção é simples: Ora et labora“.
A Grande Obra não é especulação. É trabalho interior que se relaciona com o mundo exterior, mas o processo é microcósmico. Esse microcosmo secreto compõe a matéria central das iniciações desde a antiguidade. Como observa Patrick Paul, “esse segredo dos antigos é, ao mesmo tempo, acessível e pouco acessível. Acessível porque os sábios sempre deixam pegadas dessa realidade. Pouco acessível, pois o entendimento deles é geralmente deturpado pelos ignorantes, roubado e não entendido pelos falsos sábios e escarnecido pelos céticos.”
A Pedra como Retorno
Jung compreendeu que a busca alquímica pela Pedra Filosofal era projeção do processo de individuação. Em seu Comentário sobre o mistério da Flor de Ouro, ele escreve: “uma claridade paradisíaca se alterna com a mais profunda e terrível das noites.” Mais do que alternância, trata-se de uma união dos contrários, de uma integração dos paradoxos, qualificada de Rebis, de andrógino. É preciso realizar à medida que o caminho iniciático se efetua, portar a sombra e transformá-la, nutrir a luz e entregar-se a ela.
A realidade que fundamenta a busca alquímica não deve ser compreendida como uma teoria relacionada a um conhecimento antigo, mas como a expressão de uma matéria viva, de uma experiência vital atemporal e transcultural que conduz a uma transmutação profunda na estrutura íntima do homem. A propósito, a raiz da palavra “transmutação” é significativa. Ela provém da família indo-europeia mei, que significa “mudar”, “trocar”. Na cultura grega, a palavra (ameibein) remete a algo que se troca ao se responder à outra fala, como a poesia pastoral com seus cantos alternados e seus duelos orais.
Essa situação evoca a presença de duas pessoas face a face, a relação entre mestre e discípulo ou entre dois companheiros de algum modo como o amor que, na relação entre duas pessoas, permite a transformação de ambos. Com meare, o latim oferece a ideia de passagem, de rota, de permissão para ir e vir de tipo militar, de algo normalmente proibido, mas que pode ser atravessado. Nesse sentido, transmutare significa “fazer mudar de lugar”, segundo a ótica de um deslocamento, de uma passagem, de uma troca (mutare) “através”, a fim de se ter acesso a um “além” (trans).
Os Três Mundos e o Homem Intermediário
Patrick Paul nos lembra que o processo reunindo Céu, Terra e Homem opera de modo ternário. Supõe três “mundos”: o do espírito (Spiritus Mundi), equivalente ao Céu; o do corpo (Corpus Mundi), remetendo à Terra; e o da alma (Anima Mundi), peculiar ao homem e ao seu duplo pertencimento singular pela Terra e universal pelo Céu.
O Anima Mundi, a alma do mundo e o mundo da alma, intermediário, é o lugar ao mesmo tempo da decadência e da redenção. Esse mundo intermediário situa-se entre um mundo de Criação (Briá, na cabala), de natureza espiritual, e um mundo físico, de natureza corporal. Ele é a sede das forças estruturantes, formadoras mas também separadoras, simbolizadas com frequência pela Serpente ou pelo Dragão, em sua natureza dupla: substancial e essencial, respectivamente enxofre e mercúrio.
Há, portanto, três “Mundos”: o do “sem forma”, espiritual; o do “desejo”, anímico e animador; e o da forma, corporal. Do mesmo modo, há três agentes: o Mercúrio, princípio espiritual de estabelecimento de relações; o Enxofre ou Homem Vermelho, princípio de animação, ligado àquilo que nos agita, que nos põe em movimento; e o Sal, princípio de fixação.
Henry Corbin, ao tratar do sufismo xiita, apresentou a frase: “espiritualizar o corpo e corporificar o espírito.” Esse processo revela o sentido último da Via do Céu taoísta, na qual o não-ser enraíza a dimensão interna e essencial do ser. Trata-se também de uma perfeição natural possível, segundo a qual estamos na Via (o Dao) ao sermos simplesmente o que somos.
Alam al-Mithal: O Mundo Imaginal
Para retomar outra tradição, desta vez a hindu, samsara, o mundo contingente do condicionamento, e nirvana, o mundo incondicionado da liberação, são considerados como as duas faces da mesma realidade. Assim, pela presença real da transcendência na imanência e da imanência na transcendência, característica das etapas finais da Grande Obra, uma ordem superior e invisível realiza-se no mundo sob uma modalidade qualificada de “não agente”, pois é espontânea, natural.
Esse qualificativo especifica a intervenção da pessoa que chegou a essas etapas finais da Grande Obra como não voluntária, não moralizadora, não ligada a fins ou intenções particulares no devir dos homens, mas a serviço da Unidade. Ao conceder, porém, aos seres sua liberdade, essa influência é agente sem agir (Wu Wei). Encontra-se aí uma das facetas oferecidas pela “multiplicação do Ouro” alquímico, operando como um poder não voluntário de Presença.
O processo, para se desenvolver, precisa da criação de um intermundo, chamado na tradição sufi xiita de alam al-Mithal, mundus imaginalis (cuja tradução forjada por Corbin é “mundo imaginal”), que articula o mundo sensível de nossas existências, alam al-Molk, ao mundo das Almas imateriais, o alam al-Malakut, e, mais além, ao mundo das Inteligências ou Anjos-arquétipos, o alam al-Jabarut.
“Tudo aquilo de que somos conscientes é imagem, e a imagem é a alma“, diz Jung. Quanto à alma, pode-se dizer que ela é um mundo no qual o eu está contido. A via iniciática de todas as tradições é comparável à obra alquímica: provação, morte para si mesmo, transformação interior e renascimento são as etapas-guia para renascer na luz do mundo angélico, que precede a fase do Ouro dos Filósofos.
Símbolo e Analogia: As Chaves do Imaginal
A peculiaridade do simbolismo deve ser entendida bem mais como resultante de uma relação entre aparente e oculto do que como de uma simples aliança entre as ideias. Efetivamente, num objeto, numa forma, numa expiação vital aparentes, existe uma relação com uma potência oculta, com linhas de força, com uma “assinatura” portada pelo símbolo em relação com a interioridade.
Essa potência interior, por sua vez, remete à nossa própria interioridade e evoca uma potência anímica específica alojada em nós e que, por meio do próprio símbolo, torna-se falante. Essa “fala” simbólica exige uma interpretação de um tipo particular, uma lógica de pensamento que se apoia na analogia. Símbolo e analogia constituem os fundamentos teóricos do acesso ao “mundo imaginal” como ciência da subjetividade.
A imaginação em questão é uma realidade da alma, um órgão de percepção que permite penetrar num mundo ao qual o pensamento analítico não tem acesso. Somente um pensamento vivo, subjetivo, criador, não-dual (no sentido de simbólico), ou seja, um pensamento que é experimentação da globalidade de nosso ser, pode abrir as portas de mundos que não obedecem à objetividade e nem à separação.
No entanto, para extrair essa “fala” de dentro da alma, para nos abrirmos para outras realidades, também é preciso que o nível existencial seja purificado, ou seja, que possamos nos pôr em conformidade com a lei energética dos mundos superiores. E uma vez que o mundo imaginal no sentido de uma imaginatio vera, de uma imaginação verdadeira e não de uma phantasia, de uma imaginação fantasiosa e deformada é a chave necessária para o processo alquímico.
O Trabalho com as Figuras
Uma obra como a de Lambspring pede, à sua maneira, o mesmo despertar para o mundo imaginal, pelo texto e pelas imagens e símbolos que ela nos oferece. Portanto, trata-se de considerar o seu conjunto como um meio para fixar nossa atenção, essa concentração podendo abrir outros espaços, possivelmente desconhecidos, no nosso interior.
A concentração em cada uma das Figuras cria um coagula que torna possível um solve e uma recepção. Trataremos, então, de captar as linhas diretrizes subjacentes ao texto e à imagem, de senti-las, reconhecê-las e deixar que elas nos inspirem através de algumas similitudes. Por outro lado, as resistências psíquicas, ou cognitivas, a impressão de ignorância são o reflexo e os indicadores de negror que precisa ser atravessado para que se possa ter acesso a uma luz mais interior.
Este Tratado da Pedra Filosofal nos diz, desde a sua introdução, que o trabalho espiritual, ao contrário do que se pensa normalmente, está ligado a uma transformação psicocorporal. Entrar em seu simbolismo complexo, atravessar as fases de solve e coagula (de inspirações, intuições, concentração, reapropriação), transfigura nosso psiquismo, nossos pensamentos, nossa lógica e, a partir de uma realidade inicial de fragmentação, desenvolve e constrói, pouco a pouco, um caminho rumo ao Uno.
Imagens do Tratado
Abaixo, compartilho um trabalho pessoal: as gravuras do Tratado de Lambspring que coloquei cor e enriqueci em detalhes usando inteligência artificial generativa. Que essas imagens abram pequenas passagens ao mundo imaginal. Não as interpretemos ainda. Deixemos que elas nos olhem primeiro, que nos interroguem antes de respondermos.
Sugestões de Leitura:

















