Vertigo e o Fracasso da Transmutação
Série Cinema e Alquimia
A vertigem não é medo da queda. É medo da ascensão.
Scottie cai antes mesmo do filme começar. A acrofobia que o paralisa não é apenas sintoma traumático, mas recusa ontológica. O ego que teme as alturas teme a própria transcendência. Prefere a planície segura da identidade conhecida ao risco de dissolução que toda elevação exige.
Quando encontra Madeleine, Scottie não vê uma mulher. Vê a imagem de sua própria alma projetada no mundo. O fascínio que ela exerce não vem dela, mas do vazio dele. E ela é o espelho perfeito porque está vazia. É uma atriz contratada para encenar um papel. Scottie se apaixona por uma ausência.
A nigredo, a primeira fase da Grande Obra marcada pelo enegrecimento, pela descida ao inconsciente e pelo confronto com a sombra, começa aqui. Não no cemitério, não na torre, mas no primeiro olhar. O ego mergulha na sombra quando confunde a anima com pessoa real. A obsessão é sempre sinal desse erro primordial: tomar a imagem psíquica por objeto externo.
Madeleine passeia entre túmulos. Contempla retratos de mortas. Aproxima-se da água como quem busca retorno ao indiferenciado. Scottie a segue porque reconhece nela o chamado da própria dissolução. Mas não compreende que esse chamado deve ser atendido interiormente. Tenta salvá-la quando deveria deixar-se morrer.
A queda da torre é morte simbólica. O ego perde a anima, a imagem interior do feminino, a alma que medeia entre consciência e inconsciente. Na clínica, Scottie habita o branco estéril da albedo frustrada. A albedo, segunda fase da Obra, é o branqueamento que segue a putrefação: momento de purificação, de separação entre substância e ilusão. Mas aqui não há purificação real, apenas anestesia. O sofrimento não é atravessado, é evitado. A cor desaparece porque a vida desapareceu.
A albedo verdadeira exige reconhecimento: a anima não é o outro, mas imagem interior. Scottie recusa essa consciência. Quando encontra Judy, ele não vê a mulher. Vê a possibilidade de restauração. O projeto é claro: reconstruir a imagem perdida, idealizada.
Ele a violenta com sua projeção. Exige que ela mude cabelo, roupas, gestos. Não ama Judy, usa Judy para realizar Madeleine. Mas Madeleine nunca existiu e nunca pode vir a existir. O que ele ama é um fantasma que ele mesmo criou, tal como a própria cena de Judy surgindo como Madeleine revela. A compulsão estética substitui o trabalho interior. A forma substitui a substância.
Esta é a albedo patológica: um branqueamento que não purifica, apenas congela o indivíduo em formação em uma busca frenética direcionada ao exterior. O ego tenta controlar a anima pela repetição, pela fixação da imagem. Não há movimento, apenas círculo vicioso. A luz aqui não ilumina, ela cega.
A revelação na cena do colar poderia ser momento de verdade. O ego descobre que foi enganado. A mulher amada era construção, farsa, mentira. Mas essa descoberta não libera Scottie, o enreda ainda mais. Ele precisa retornar à torre, refazer o trajeto, confrontar a origem.
A subida final ao campanário é tentativa forçada de rubedo, a terceira e última fase da Obra, o avermelhamento que simboliza a união dos opostos, a coniunctio entre masculino e feminino, espírito e matéria. O movimento ascendente que antes paralisava agora se torna necessário. Scottie arrasta Judy escada acima porque precisa integrar alto e baixo, espírito e corpo, verdade e ilusão. A coniunctio seria possível aqui.
Mas a freira aparece. O numinoso, aquilo que é sagrado, transcendente, que ultrapassa a compreensão racional, irrompe. E a anima cai novamente. A subida não foi parceria, integração, mas nova violência. Aqui é possível pensar nos chamados laboratórios alquímicos disponíveis hoje, quantos realmente estão atuando em favor da Grande Obra?
Não há união. Há apenas repetição da perda. O ego não suporta a presença simultânea do sagrado e do feminino. Quando o Self, o centro organizador da psique, a totalidade que o ego busca realizar, se manifesta, a anima desaparece. A rubedo aborta.
Scottie permanece no topo da torre. Conseguiu subir, venceu a acrofobia. Mas não está completo. A vitória sobre o sintoma não é vitória sobre a neurose. Ele dominou o medo das alturas, mas não integrou a sombra. O trabalho interior falhou. É possível aceitar que uma iteração sobre o labor alquímico foi feito, mas a chance de integração foi frustrada.
Vertigo retrata uma sabedoria presente na leitura simbólica da alquimia: projeção impede transmutação. Quando buscamos o Self no outro, encontramos apenas nosso próprio vazio refletido. A anima não está na mulher, está na relação que estabelecemos com nossa própria interioridade.
Scottie procura fora o que só existe dentro. Por isso sua busca é condenada desde o início. Não há Grande Obra possível enquanto o amor for idolatria. Não há coniunctio quando o ego recusa reconhecer que a anima é imagem, não pessoa.
A vertigem final não é medo. É lucidez. O abismo que Scottie contempla do alto da torre não está embaixo, está dentro. A queda que ele sempre temeu já aconteceu. Ele é o homem que caiu e nunca se levantou.
O filme termina sem redenção porque não pode haver redenção sem consciência. Scottie venceu o medo, mas perdeu a alma. Permanece no alto, mas permanece vazio. A elevação sem integração não é transcendência, é dissociação.
A Grande Obra fracassa quando o ego exige que o mundo exterior realize seu trabalho interior. Scottie queria que Madeleine o salvasse. Queria que ela fosse seu Self. Mas ninguém pode ser Self de outro. A individuação, o processo de tornar-se quem verdadeiramente se é, de realizar a totalidade psíquica, é tarefa solitária.
Hitchcock filma um drama alquímico poderoso precisamente porque filma seu fracasso. Mostra o que acontece quando a transmutação é direcionada para fora, e não para dentro. O resultado é sempre o mesmo: a imagem amada desaparece, e o ego permanece suspenso entre o céu e a terra, incapaz de habitar qualquer um dos dois.
E a vertigem persiste. Talvez dissimulada, mas persiste.


